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O processo comportamental da escrita

“Não tenho tempo para escrever”. “Todos sabem escrever, menos eu”. “Quando lerem o que escrevi, todos saberão que eu sou uma farsa”. Esses são alguns dos pensamentos compartilhados entre pesquisadores e pesquisadoras, das mais distintas áreas do conhecimento, perante a temida página em branco sempre a lembrá-los daquilo que por mais um dia não fizeram com conforto e satisfação: escrever.

(O Bloqueio da Escrita Acadêmica: caminhos para escrever com conforto e sentido. Robson Cruz, 2020, p. 9)

Eu não sei o quanto de vocês podem achar pertinente um enfoque maior sobre a escrita, mas para mim, escritor acadêmico e literário, demorei bastante para perceber a profundidade daquilo que escolhi como ofício a ser realizado para o restante de minha vida. Foi preciso que o escrever me trouxesse um sofrimento intenso, crises de ansiedade encarando a tela branca do word, tirasse meu sono de frustração, para que eu começasse a encarar como um problema sério e levar para a terapia. Lá, em movimento clínico, percebi que colocar rabiscos em papéis ou ver a projeção de palavras no computador era apenas uma parte de um processo maior e complexo.

Infelizmente, não estou apelando para meu lado exagerado de escritor, ao falar que a escrita está acompanhada de sofrer. Cruz (2018; 2020), Silva (2018) e Skinner (1957)   nos alertam para uma série de contingências aversivas associadas ao escrever, em que sentimentos de culpa, tristeza, ansiedade aparecem com mais frequência do que as próprias palavras. A razão primeira é até fácil de imaginar: nós escrevemos para ser julgados, seja por um orientador, editor de revista, leitor ou seguidor no Instagram. Para piorar a nossa situação, observa-se uma baixa fonte de reforçadores, como a falta de prestígio e retorno financeiro. Por exemplo, nos Estados Unidos, somente 21% das pessoas que trabalham com a escrita conseguem viver apenas com a renda obtida pelos direitos autorais (Watson, 2020). E para dar a cereja reluzente sobre o bolo, desde o século XIX muitas noções romantizadas, reproduzidas culturalmente, enfeitam e delineiam padrões inverossímeis com a realidade — o que poderia nos explicar os sentimentos de culpa que aparecem.  O pior é que a academia parece não estar tão atenta e engajada para a solução dessas questões (Cruz, 2018; 2020).

Talvez neste momento alguns episódios podem estar vindo à cabeça com desconfortos sentidos ao escrever. E, assim como eu, pode ser que um questionamento também esteja começando a martelar em sua cabeça, como martelou na minha: ok, então o que diabos é a escrita, afinal?

Em meus atendimentos, costumo usar uma metáfora de que a escrita é como um rio. Haverá momentos em que obstáculos aparecerão para impedir o seu fluxo, em outros momentos, afluentes podem fazer com que ele aumente e transborde. É verdade, contudo, que um grande fluxo nem sempre significa algo saudável, já que esse rio pode causar inundações, mas ninguém de fato gosta quando está seco.

Traduzindo para uma linguagem comportamental, a escrita é um comportamento complexo, de parte privada e parte pública, cujas variáveis poderão dificultar ou facilitar a sua frequência. Como todo padrão aprendido, a história individual e cultural, a forma com qual o indivíduo se relacionou com a escrita ou contextos que a envolveram são capazes de afetar num nível de transformar uma atividade simples para uns, algo extremamente penoso para outros. Muitas vezes, esses desconfortos e sofrimentos sentidos são tão intensos que geram um movimento de esquiva acentuado, prejudicando projetos de vida, como observado por Daily e Miller (1975; 1983), em que pessoas com alta taxa de ansiedade envolvida com a escrita,  passaram a evitar disciplinas ou cargos profissionais que de alguma maneira trabalhem com produções escritas. A este fenômeno foi dado o nome de “Apprehensive Writer”.

Veja que em nenhum momento está se falando de preguiça, falta de empenho — muito menos falta de um dom! —, mas de uma condição comportamental que, pelo menos desde 1957, em Verbal Behavior, Skinner já nos sinalizava uma potencialidade de sofrimento envolvido. Especialmente a Academia deveria estar preocupada com isso, não somente porque enquanto disciplina científica responsável por tais fenômenos, como, ao meu ver,  essa barreira está afetando nossas produções acadêmicas, nossas pesquisas e publicações, tal qual um déficit basilar. Afinal, não é a ciência uma utilização específica da linguagem? (Skinner, 1957) Se precisamos escrever para descrever e estudar nossos objetos de estudos, o que acontece se cientistas não estão escrevendo?

Aos professores e orientadores que estiverem me lendo, quantas vezes vocês não viram uma aluna ou aluno desistir, apesar de evidente o quanto conhecia e o quanto tinha para contribuir? Quantas vezes vocês mesmos não pensaram em desistir por mais que soubesse exatamente o que queria escrever? Quantos cientistas não estamos perdendo?

Então, se escrever pode ser causa para muitos sofrimentos — como em casos de condições intensas, tal qual Apprehensive Writer —, por que não abordamos isso com mais ênfase? O quanto estaríamos preparados, como profissionais, para atender clientes com tais demandas? Será que apenas uma dessensibilização sistemática seria o suficiente para lidar com essas altas taxas de ansiedade em que indivíduos têm mudado sua vida inteira afim de evitar a escrita? E quanto a nós mesmos, escritores, quais práticas que realizamos nos ajudam ou atrapalham?

É com a tentativa de ajudar outros escritores, acadêmicos ou literários, a não passar pelo o que passei, que dou início a esta série de textos sobre o processo comportamental da escrita. Espero ter conseguido sua atenção e curiosidade até aqui, que minhas palavras sobre a própria dificuldade de escrever as palavras, tenham colocado uma pedrinha em nosso sapato analítico-comportamental. Para o próximo encontro, gostaria de lançar uma proposta: tente lembrar das vezes em que tentou escrever e sentiu dificuldades, o que pensava? O que sentia? Qual era o contexto? Estas perguntas podem trazer certas reações emocionais aversivas, então tome seu tempo para revisitar essas memórias. No próximo texto iremos abordar o terrível e famigerado Bloqueio de Escrita, e olhar para nossa história com o escrever poderá ser uma bússola muito útil nessa jornada.

Até lá, fiquem bem e em segurança!

Referências:

Cruz, R. N. (2018). Becker e o silêncio sobre a escrita na pós-graduação: soluções antigas para o cenário Brasileiro atual?. Psicologia & Sociedade, 30.

Cruz, R. N. (2020). O Bloqueio da Escrita Acadêmica: caminhos para escrever com conforto e sentido. Belo Horizonte: Artesã.

Daly, J. A., & Miller, M. D. (1975). The empirical development of an instrument to measure writing apprehension. Research in the Teaching of English, 9(3), 242-249.

Daly, J. A., & Wilson, D. A. (1983). Writing apprehension, self-esteem, and personality. Research in the Teaching of English, 327-341.

Watson, A. (2020, April 24). Number of writers and authors in the United States from 2011 to 2019. Statista.

Silvia, P. J. (2018). How to write a lot: A practical guide to productive academic writing. American Psychological Association.   Skinner, B. F. (1957). Verbal behavior. New York: Appleton-Century- Crofts.

Jacinto Junior – Psicólogo formado pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR – 2020). Escritor de Literatura e Co-Fundador do coletivo de Escritoras e Escritores Nordestinos: Oxe LGBT NE. Atua com processos clínicos e com atendimentos focados para a escrita.

Onde encontrar:

Instagram: @autorjacinto/ @projetoparnaso/ @oxelgbtne