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Bloqueio de escrita: o temível!

O teclado do PC não funciona? Entenda as causas - Blog bringIT

por Francisco Jacinto Junior

Ok, imagine que você é alguém que canta, tem uma turnê marcada e, como as coisas nunca foram fáceis, cada show tem uma enorme importância. Você começa seus shows, é capaz de sentir o amor e a emoção de cantar, quando de repente, não mais que de repente, sua voz falha, o nervosismo aumenta, e fica impossível cantar. Você sabe todas as letras, sabe as notas, mas por alguma razão: nada acontece. Se essa metáfora fosse sobre um mímico, talvez não tivesse problema algum, mas para um cantor… Bem, acho que vocês já entenderam onde eu quero chegar.

Para escritores, o escrever é parte substanciosa de seu ofício, por essa razão, não é de se admirar que o bloqueio de escrita seja um fenômeno tão temível. Sintomático, esse medo pode ser observado em como a arte explora conflitos de escritores em torno de estados de bloqueio de escrita. Há filmes, séries, livros e até mesmo jogos com essa temática. Boa parte do conteúdo citado é drama, já no caso de Alan Wake, um jogo de 2010, o bloqueio da escrita é permeado por elementos do terror. E a academia? Bem, ela pareceu dar pouca atenção ao fenômeno no decorrer dos anos, principalmente em se tratando de escritores literários (Ahmed, 2019; Cruz, 2020).

Na literatura, encontramos a definição de que o Bloqueio de Escrita é um estado de dificuldade em começar ou manter uma escrita, de duração distinta e que pode ocorrer nos diversos estágios do escrever (Ahmed, 2019; Cruz, 2020). É comum ouvir explicações de que escritores não escrevem porque estão passando por um bloqueio de escrita. Essa explicação, no entanto, como as demais que envolvem o uso de conceitos, acaba caindo numa circularidade que dificilmente irá nos levar a algum lugar. É o famoso ciclo: você não está escrevendo porque tem bloqueio de escrita ou você tem um bloqueio de escrita porque não está escrevendo? Assim, para o professor Robson Cruz, um dos pesquisadores brasileiros que tem se dedicado ao estudo do processo psicológico da escrita, o fenômeno do bloqueio da escrita deve ser compreendido muito mais como um sintoma, um estado a ser investigado do que uma explicação a ser buscada (Cruz, 2020).

Vamos voltar rapidamente à metáfora do rio explorada no texto anterior. Se a escrita é como um rio que flui, certas variáveis servem como barreiras impedindo seu fluxo, desviando suas águas ou mesmo as represando por completo. O bloqueio da escrita, então, é este estado em que o terreno está dificultando o seu processo. A água está lá – como muitos escritores descrevem saber o que escrever -, é preciso apenas encontrar a forma de fazê-la atravessar, nem que seja através de novos caminhos. E sim, eu sei que na metáfora é mais fácil, por isso devemos ter atenção e cuidado.

Ahmed (2019) realizou uma revisão e uma pesquisa com 146 escritores de diversos gêneros ficcionais e não-ficcionais. Seu objetivo era realizar um levantamento de variáveis que favoreceriam o estado de bloqueio e verificar em quais momentos tendiam a aparecer e de que maneira isso ocorria em sua amostragem. As quatro categorias de variáveis que influenciariam na escrita foram:

  • Psicológicas/afetivas: como episódios estressantes ou estados de depressividade ou esgotamento.
  • Motivacionais: tais quais avaliação de ansiedade ou desmotivação com o processo de escrita.
  • Cognitivas: a exemplo de perfeccionismo ou  rigidez de planejamento.
  • Comportamentais: como se ocupar demais, alterar a rotina ou procrastinar. De acordo com a sua revisão, estas foram consideradas as variáveis que mais afetariam o comportamento de escrita.

Ahmed (2019) observou em sua amostra que variáveis psicológicas e motivacionais apareceram mais como causas de períodos de bloqueio. Observou-se também que, escritores que mantinham um ritmo mais frequente de escrita apresentavam períodos curtos de bloqueio. E, por fim, a autora sugere que seus dados indicariam que certas variáveis estariam mais propensas a aparecer em estágios específicos do processo de produção.

Silva (2018), por sua vez, atenta para certas barreiras especiais que prejudicariam o escrever, certas regras que comumente aparecem nas falas de escritores, sendo elas: “Não tenho tempo para escrever”; “Eu preciso fazer algumas análises primeiro” ou “preciso ler mais trabalhos sobre o tema”; “Para escrever mais eu preciso de um novo computador”; “Eu estou esperando a inspiração”; “Eu preciso organizar coisas antes de escrever”.

Como dito, a autora parece se pautar em certas regras que poderiam enrijecer ou prejudicar o processo da escrita, estabelecendo-se assim como barreiras para seu fluxo elevado. Embora algumas dessas sejam semelhantes às categorias de Ahmed (2019), eu decidi apresentá-las, pois é importante explorar algumas concepções que nossos clientes possam apresentar sobre a escrita. Além do mais, também é importante pensar em quantas dessas barreiras nós mesmos acreditamos.

Naturalmente, quando se diz que “preciso ler mais trabalhos sobre o tema” é uma barreira para a escrita, não se deseja reforçar que pessoas escrevam sem fontes. Porém, é comum acreditarmos que não sabemos nada sobre o que queremos escrever, mesmo que tenhamos nos dedicado a isso. Além disso, tudo bem não saber sobre tudo, sendo a escrita um processo, você pode começar a escrever e depois corrigir as informações que podem ter sido colocadas equivocadamente. O mesmo vale para “não tenho tempo para escrever”. É comum ver que escritores realizam outros ofícios além da escrita, logo, o tempo será inevitavelmente dividido. Contudo, breves sessões de escrita podem ser arranjadas para manter uma escrita regular. Calculem comigo: 15 minutos por dia é quantitativamente maior do que 0 minuto por dia. Eu fiz as contas, pode conferir.

Cruz (2020) também aponta que certas variáveis culturais podem contribuir para o estado de bloqueio. A romantização de ideias sobre a escrita ou sobre ser um escritor podem contribuir para padrões ineficientes. O elitismo e o não reconhecimento da aprendizagem tácita reforçam esse cenário, atribuindo valores intelectualmente superiores à escrita, ignorando ou mesmo punindo práticas que visam o desenvolvimento processual da escrita.

Nesse contexto, Boice (1984) pontua como práticas culturais dentro da academia podem contribuir para esses estados. Em seu artigo Why Academician don’t write, ele observou que mulheres apresentavam uma menor produção escrita em relação aos homens e padrões mais perfeccionistas. A explicação? Práticas machistas, assim como outras práticas discriminatórias vivenciadas dentro da academia,  poderiam estar dificultando os padrões de escrita,. Ademais, regras não claras sobre publicações e os demais trâmites também contribuiriam para este contexto.

Essas variáveis são, ao meu ver, ainda mais preocupantes, uma vez que Ahmed (2019) e Silva (2018) pontuam padrões individuais que podem ser adaptados a contextos favoráveis para a escrita, Boice (1984) e Cruz (2020) alertam para práticas culturais mais difíceis de serem modificadas. É como se a pessoa que canta e está sem voz, ainda tivesse que passar por todas essas dificuldades no meio de um bombardeio que não está exatamente sob seu controle. E isso não diz respeito a nossos clientes, mas a nós pesquisadores e membros da academia: o quanto estamos corroborando tais práticas?

 Por mais que, enquanto profissionais de Psicologia, possamos auxiliar nossos clientes em momentos de bloqueio, esta prática é de certa forma paliativa, e acredito que isso é importante de se pontuar. Mesmo que ensinemos práticas para que a escrita ocorra de maneira saudável, fluida, é particularmente impossível dizer que escritores estejam cem por cento livres de estados de bloqueio. Há momentos em que coisas fogem do alcance, talvez um prazo apertado, um estresse por um trabalho importante, alguém da família que adoeceu… Como uma dor de cabeça, ele pode aparecer. Brigar contra um sintoma, contra estados emocionais aversivos tem demonstrado ser mais prejudicial do que de fato benéfico (Hayes, Strosahl & Wilson, 2021), seria equivocado supor que na escrita aconteça o mesmo?

Então por que insistimos em olhar para o bloqueio de escrita como o temível? Claro, ninguém deve gostar de passar por bloqueios de escrita, mas se mudarmos nossa relação com ele, se passarmos a olhá-lo como um mensageiro, um sinalizador de que algo não está bem naquele momento, talvez se torne mais fácil de trabalhar e quem sabe não traga tantos sentimentos aversivos. Principalmente porque, em alguns casos, esses sofrimentos podem ser fruto de uma cultura punitiva, coercitiva, ou empobrecida de reforçadores, e não necessariamente de comportamentos diretos do indivíduo.

Ou seja: se o rio não está fluindo por este caminho, pode não ser problema da água, mas do percurso. Encontrar, com seu cliente, formas de potencializar o seu fluxo, ou de criar novos caminhos para que essa água transborde, pode ser mais útil do que focar exatamente nas barreiras encontradas.

Em textos futuros eu gostaria de abordar padrões que favorecem a escrita. Porém, como é comum de se ouvir que a Inspiração vem antes da escrita, pensei que fosse melhor começarmos por ela. Para o próximo texto, eu gostaria que pensasse: quais são as coisas que te inspiram? Músicas? Cenários? Conceitos? É a prática do trabalho? Não é porque somos cientistas que devemos ignorar nossas Musas.

Até lá, espero que fiquem bem e em segurança.

Referências:

Ahmed, S. J. (2019). An Analysis of Writer’s Block: Causes, Characteristics, and Solutions.(Dissertação de Mestrado). University of North Florida, Jacksonville, FL. Disponível  em: https://digitalcommons.unf.edu/etd/903

Boice, R., & Jones, F. (1984). Why academicians don’t write. The Journal of Higher Education, 55(5), 567-582. doi: 10.1080/00221546.1984.11780679

Cruz, R. N. (2020). O Bloqueio da Escrita Acadêmica: caminhos para escrever com conforto e sentido. Belo Horizonte: Artesã. Hayes, S. C., Strosahl, K. D., & Wilson, K. G. (2021). Terapia de Aceitação e Compromisso-: O Processo e a Prática da Mudança Consciente. Artmed Editora.

Jacinto Junior – Psicólogo formado pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR – 2020). Escritor de Literatura e Co-Fundador do coletivo de Escritoras e Escritores Nordestinos: Oxe LGBT NE. Atua com processos clínicos e com atendimentos focados para a escrita.

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