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Questões sociais

De que forma podemos viver nossas vidas para deixarmos um mundo melhor para as futuras gerações?

Felipe Lustosa Leite

Este é o primeiro de uma série de textos que estarei escrevendo para a Equipe DiadeLab, nos quais buscarei fazer reflexões sobre nosso papel enquanto analistas do comportamento para construir sociedades mais saudáveis e sustentáveis. Sei que a proposta é ambiciosa, mas não tenho a intenção de trazer verdades ou soluções definitivas. Meu objetivo é fazer com que os leitores parem, olhem para si mesmos, para como vivem suas vidas, para aquilo que entendem ser um(a) analista do comportamento, e explorem os limites e fronteiras de nossas possibilidades de ação. Espero que tenhamos uma jornada cheia de aventuras, pensamentos perturbadores e ideias para trazer mais sorrisos para este pálido ponto azul.

Mas enfim, então, o que significa viver uma vida a partir da qual deixamos de herança algumas coisas legais e construtivas para quem ainda habitará este planeta? Podemos ir para várias direções com essa discussão, desde argumentos espirituais a discussões sobre ética. No entanto, dada minha trajetória enquanto analista comportamental da cultura, meu percurso reflexivo se dará majoritariamente por esse campo de investigação e áreas tangentes, como sociologia, economia, antropologia, dentre outras. Para quem já me conhece, parece óbvio que parto de uma discussão da qual gosto bastante, e que foi lançada por um biólogo chamado Garret Hardin.

No clássico artigo The Tragedy of the Commons, Hardin (1968) discute um dilema resultante da ênfase prioritária no bem do indivíduo em detrimento do bem coletivo. Imagine que você e mais um grupo de vinte pessoas vivem em uma área rural e criam gado em um pasto coletivo. O pasto é coletivo, mas cada vaca é considerada propriedade privada. O pasto é o que chamamos de commons. Vocês tiram seu sustento do seu gado, que vive e se alimenta no pasto coletivo. Desse modo, o desenvolvimento saudável do seu gado depende do consumo de recursos coletivos (do pasto). No entanto, qualquer renda que você consiga extrair do seu gado é unicamente sua. Esse cenário implica em contingências sociais que operam do seguinte modo: (i) criar gado é uma atividade que vem a produzir consequências reforçadoras, acessadas pelo indivíduo; (ii) criar gado também leva a uma consequência aversiva, a redução de recursos do pasto, o que demanda custos com manutenção e cuidados; (iii) nota-se que, enquanto as consequências reforçadoras são desfrutadas pelo indivíduo, as aversivas são distribuídas pelo grupo. Bem, eu posso facilmente maximizar meus ganhos aumentando a quantidade de gado que crio e outros provavelmente me seguirão nesse caminho.

Mas, bem, não devemos perder de vista que quanto mais gado há no pasto, mais rápido ele se deteriora e, com isso, maiores são os custos para manutenção e cuidados. Aqui chegamos a uma clássica situação de esquemas concorrentes. Por um lado, se respondo de modo a maximizar minha criação de gado, eu produção mais lucro para mim, e sem muita demora, mas “pressionar essa barra” cria um problema que é compartilhado por todos. Eu levo os benefícios só para mim, mas divido as batatas quentes. Por outro lado, posso responder de modo a criar uma quantidade de gado mínimo para minha subsistência, de modo que dê fôlego para o pasto se renovar naturalmente, reduzindo assim a magnitude das consequências reforçadoras possíveis, mas também reduzindo o prejuízo coletivo. E aí, qual a escolha mais provável?

Tomando como base uma vasta literatura experimental, tanto analítico-comportamental como de outros campos, tudo indica que a escolha mais provável é direcionar suas energias para se tornar um “Rei do Gado” e não se preocupar muito com o destino do pasto, afinal, não tem outros que cuidarão dele também? Mas poucos notam um detalhe simples, brutalmente relevante, mas que parece estúpido quando falamos em voz alta. Uma vez que praticamente todos os participantes desse universo de pesquisa mencionado são crias das sociedades ocidentais modernas (ou de culturas influenciadas por valores amplamente desenvolvidos na Europa Ocidental), é natural que essas pessoas se enxerguem prioritariamente como um “eu”, e esse “eu” tem mais valor do que o “nós” para as pessoas criadas nesse modelo cultural. Opa… mas de onde vem isso?

Os valores derivados de sociedades ocidentais modernas – e que se espalharam pelo mundo – não são características “naturais” do ser humano. O homo sapiens é um animal cuja característica mais marcante é sua sociabilidade. Nossa capacidade de organização social talvez tenha sido o elemento mais marcante para o nosso sucesso evolutivo (cabe notar que nosso refinamento em nos organizarmos socialmente é o que deu espaço para o desenvolvimento da mais notória prática cultural humana, a linguagem). Somos seres absurdamente dependentes uns dos outros, mas nos enxergarmos como indivíduos autônomos, independentes, com pensamentos próprios, vontades próprias e donos do nosso próprio destino. No entanto, não devemos perder de vista que essa visão de homem é uma invenção cultural – uma invenção que está cobrando seu preço nos dias atuais.

No texto seguinte desta série irei expor como ocorreu a invenção do conceito de indivíduo moderno, de modo que se possa refletir de que maneira podemos nos ver no mundo de outro modo: como partes integrais de um todo social; como seres interdependentes uns dos outros; não como centros do universo, mas como grãos da poeira estelar que o compõe.

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